Desde o momento em que aqui chegamos, trabalhamos para sobreviver neste mundo em constante desordem, corremos para compreender as regras da vida e do meio-ambiente e assim encontrar o nosso lugar nesta dança cósmica.
Neste intrincado labirinto de deleites e perigos procuramos assimilar lições que deem sentido ao caos, compreender padrões e desenhar regras de sobrevivência para cada fragmento de experiência com que colidimos continuamente. E assim vamos montando a nossa história.
Todo o dia estamos a escrever as nossas histórias, de forma contínua, na nossa mente. Histórias sobre quem somos, para onde vamos e a razão das coisas acontecerem de determinada forma.
Somos o personagem principal da nossa história, com altos e baixos, desafios e conquistas. No entanto, muitas vezes, os discursos culturais tentam assumir o papel de guionista, ditando quem devemos ser, fechando-nos em caixas limitadoras.
Quais são esses discursos culturais dominantes que nos restringem?
São histórias sociais e culturais que internalizamos e que moldam a nossa visão do mundo, ditam as nossas expectativas e influenciam as nossas crenças.
Foucault e White (2007) utilizaram o termo “julgamento normalizador” para descrever o fenómeno no qual as pessoas ou instituições aplicam normas e valores culturais dominantes para avaliar o comportamento e as experiências dos indivíduos. Essas normas são por vezes baseadas em expectativas sociais, crenças e padrões considerados “normais” ou “adequados”.
De acordo com a cultura dominante, somos influenciados em diversos aspetos da vida, como a autovalorização e estatuto. A sociedade ensina-nos o significado de normalidade, sucesso, virilidade e beleza, o que influencia inevitavelmente a forma como nos vemos nas diferentes esferas, de pai, de mulher, ou de como ser emocionalmente forte ou produtivo, por exemplo.
“Quem entra numa multidão direccionada aceita, de certa maneira, suspender as suas palavras e os seus movimentos individuais, suspende as formas verbais iniciadas por Eu (entra no: nós dizemos); e reduz o mundo das acções, temporariamente, a um: nós fazemos.” — Gonçalo M. Tavares
Esta ideia de suspendermos as nossas características individuais por um alinhamento com o discurso cultural dominante, pode gerar confusão, insatisfação com a vida ou até sofrimento, e isso potenciar alguns problemas de saúde psicológica. Apercebermos-nos que podemos estar a viver uma vida que não foi escolhida por nós, onde não vemos representados os nossos valores individuais e as nossas decisões. Uma vida que não se alinha verdadeiramente com nossa identidade pessoal e bem-estar emocional.
O impacto dos discursos culturais na saúde psicológica
Quando falamos sobre saúde psicológica percebemos o impacto significativo de que estereótipos, preconceitos e padrões culturais podem ter na forma como as pessoas se percebem e constroem a sua identidade.
Narrativas sociais estigmatizantes têm o poder de moldar a perceção pública e afetar significativamente a identidade pessoal daqueles que lidam com problemas de saúde psicológica. Narrativas limitadas e negativas restringem a visão de si mesmas, impedindo o florescimento de uma identidade positiva e saudável.
Imaginemos, por exemplo, uma pessoa que enfrenta uma depressão, ouvindo e apercebendo-se que os discursos culturais em torno da sua problemática, estão associados a fraqueza ou falta de força de vontade. Essas mensagens sociais negativas infiltram-se na sua perceção enquanto pessoa, podendo, a mesma, ficar aprisionada nessa narrativa de que é fraca, o que fará com que se sinta ainda mais triste e incompreendida.
Este tipo de discursos estigmatizantes podem levar ao isolamento, reforçando o estigma e a vergonha associados a essa condição, e isso pode levar à ocultação do problema, prolongando e intensificando o sofrimento. O medo do julgamento e a preocupação com o estigma tem um impacto direto na procura de ajuda, desencorajando as pessoas a procurarem apoio, acabando a sofrer em silêncio e sem receber o suporte necessário para enfrentar os seus problemas.
Construir narrativas alternativas que permitam a mudança
Apesar de tudo, construir histórias alternativas é uma habilidade poderosa que todos possuímos. Em vez de nos concentrarmos apenas nos desafios e dificuldades, podemos explorar as nossas conquistas, os relacionamentos significativos e os momentos de superação.
Ao criar uma narrativa mais equilibrada e abrangente, podemos desafiar os estereótipos e construir uma identidade que não seja definida pelo estigma. É possível criar histórias alternativas que destaquem as nossas forças e recursos. Em vez de nos limitarmos a um único enredo estigmatizante, podemos explorar novas perspetivas e possibilidades e, assim, ter um conjunto alargado de opções e modos de vida.
Cada um de nós é uma combinação única de características genéticas e experiências de vida. O que me traz felicidade, a outra pessoa pode gerar tristeza. De igual forma, o que consideramos útil pode ser visto como prejudicial por alguém. Por isso, não existem instruções universais sobre como pensar, sentir ou agir que se apliquem a todos. Cada um tem uma jornada individual e complexa, que não pode ser limitada por regras rígidas. Como tal, é importante enfatizar a importância de reconhecer e valorizar essa diversidade.
Ao compartilharmos uma ampla gama de histórias, podemos desafiar uma narrativa única e estereotipada. Isso permite-nos reconhecer a complexidade e a individualidade de cada pessoa, superando os perigos de uma generalização prejudicial.
À medida que nos envolvemos na desconstrução e reconstrução das nossas histórias, podemos não apenas transformar a nossa própria visão de nós mesmos, mas também contribuir para a mudança social em direção a uma sociedade mais inclusiva e compreensiva. É desatando as nossas próprias histórias limitadoras que quebramos discursos estigmatizastes que ouvimos e sentimos nas nossas relações mais próximas, no trabalho e na sociedade.
É hora de redefinir a nossa narrativa coletiva e abrir espaço para uma compreensão mais abrangente e empática. Para isso é importante reconhecer que os discursos culturais não são estáticos. Podem ser desafiados, questionados e transformados, e, com a união das vozes, é possível promover narrativas inclusivas e compassivas, criando um ambiente mais positivo e saudável para o desenvolvimento de identidades pessoais autênticas.
Não é fácil fazermos isto sozinhos e muitas vezes é necessário contar a nossa história a alguém para que, juntos, possamos aperceber-nos de discursos culturais que nos podem estar a constranger e, identificando-os, podermos reescrever uma história mais útil e significativa para nós.