Quando falamos em narcisismo podemos falar de uma tendência de personalidade para um sentido de grandiosidade e necessidade de admiração. Embora exista mesmo um diagnóstico de perturbação de personalidade Narcísica pelo DSM, eu gostava de dar mais ênfase ao funcionamento narcísico que vai além dos critérios habitualmente descritos. Importa, por isso, mencionar que este artigo não se propõe a facilitar diagnósticos, apenas informar e capacitar quem se poderá encontrar numa situação interpessoal disfuncional. Nenhuma característica aqui descrita deve ser analisada de forma isolada e descontextualizada. Qualquer diagnóstico deve ser feito sob um olhar clínico de um profissional de saúde habilitado. Mais importante do que estabelecer um diagnóstico, é saber reconhecer padrões relacionais não saudáveis e procurar formas de lidar ou ajustar-se a essa realidade.
As características mais comumente identificadas no narcisismo são uma “autoestima” grandiosa, a manipulação nas relações interpessoais e a sensação de que têm direito a um tratamento especial quando em comparação aos outros. No entanto, há também uma forma de funcionamento narcísico que começa a ser reconhecida com expressões mais vulneráveis, de hipersensibilidade à crítica. Seja como for, é transversal a qualquer personalidade narcísica, uma visão autocentrada de si mesmos, com uma inconsciência do outro — das suas necessidades e sentimentos — e por isso, com uma dificuldade em empatizar com as experiências das pessoas com quem convivem.
Estes comportamentos visíveis do narcisismo não traduzem uma verdadeira autoestima — por detrás dessa perceção aparentemente grandiosa de si mesmos, existe um sentimento de inferioridade e um sentimento de vazio que, por vezes, é inconsciente para a pessoa. A privação de amor, carinho e validação na infância pode constituir um terreno fértil para uma expressão narcísica na vida adulta. E por isso, a necessidade de reconhecimento em adultos vem tentar compensar o que outrora lhes foi negado.
Nas organizações
A necessidade de admiração pode traduzir-se numa ambição desmedida por poder e admiração que motiva, muitas vezes, a posições profissionais de liderança, onde existe um maior potencial de poder e de reconhecimento. Embora a personalidade narcísica possa estar presente em qualquer profissão, em qualquer cargo, é comumente encontrada em posições de maior destaque.
As características que apresentam — a auto-confiança, o charme na forma como comunicam, a aparente ausência de ansiedade, a forma como se destacam num grupo, a certeza com que tomam decisões — podem ser, à primeira vista, consideradas úteis para uma posição de liderança. E por isso, é fácil serem selecionados para estas posições em detrimento de outros candidatos, assim como, mais naturalmente irão procurar oportunidades que os aproximem destes cargos e que os permitam subir mais rapidamente a hierarquia corporativa.
Há teorias que falam até na “Dark Triad” da personalidade — Narcisismo, Psicopatia, Maquiavelismo — que quando em conjunto traduzem um perfil hostil, manipulador, auto-centrado, com elevados níveis de raiva, com um caráter superficial e com ausência de empatia ou remorsos. Mais uma vez, embora inicialmente estas características possam estar “mascaradas” por uma tendência à ambição e à conquista profissional, a longo prazo têm um efeito muito negativo nas organizações e nos colaboradores com quem trabalham.
A falta de inteligência emocional
E se por um lado possa existir destreza social e profissional, há sem dúvida uma lacuna no que diz respeito à inteligência emocional. Ou seja, a capacidade de compreenderem as suas emoções e as dos outros, de estarem conscientes das suas reações e do impacto que estas têm nas suas relações, está comprometida.
Há uma facilidade na comunicação, há simpatia e até um certo charme — que acabam por ser sentidos pelos outros como superficiais. Ou seja, apesar da simpatia, não existe um interesse real pelas pessoas com quem se relacionam. As relações que estabelecem são vazias.
O outro — com todas as suas necessidades e vontades — não existe. Existe apenas enquanto objeto que possa ser manipulado em favorecimento do próprio. O que acaba por trazer um grande sofrimento para quem convive de perto com esta personalidade — seja um familiar, companheiro, amigo, colega de trabalho ou um chefe.
Sinais de alerta em colegas e líderes
Trazendo o foco para o mundo das organizações, podemos falar num colega de trabalho que não considera as opiniões dos outros e estabelece relações unilaterais, que é extremamente competitivo e precisa de ser consistentemente o foco da atenção, que é hostil, crítico e invasivo na comunicação, que procura aproximar-se de pessoas com “mais reputação” e mais poder na organização ou que se relaciona com os colegas de forma diferente dependendo de quem está presente na sala. Mas podemos também falar de um líder que estabelece comparações constantes entre colaboradores, que faz micromanaging e que tem uma grande necessidade de controlo de todos os membros da equipa (fazendo-o direta ou indiretamente — escolhendo, por exemplo, alguém para lhe comunicar tudo o que acontece na empresa), que reforça o trabalho excessivo, que manipula e culpabiliza, que invalida opiniões diferentes das dele, que faz uso do seu poder de forma abusiva, que humilha e expõe os colaboradores, que não tem uma comunicação aberta com todos os membros ou que omite informações relevantes a determinadas pessoas da equipa.
É mesmo importante realçar que a presença destas características não é suficiente para indicar um diagnóstico de narcisismo, mas alguém com traços narcísicos irá apresentar no contexto profissional algumas destas características de forma sistemática — e certamente que isso causará sofrimento a quem com ele convive. Importa também dizer que existe um espetro de narcisismo com diferentes intensidades e facetas, e que nunca podemos analisar características isoladamente não tendo em conta o contexto em que ocorrem. O narcisismo, enquanto perturbação de personalidade, requer que estejamos perante um padrão crónico e rígido de comportamento.
Seja qual for o cargo, seja qual for a expressão de narcisismo, a admiração externa e sensação de poder sob os outros funcionam como uma forma de regulação emocional, e por isso estas pessoas irão continuar a procurar formas de exibicionismo e manipulação, sempre alheios à falta de qualidade das suas relações e ao sofrimento que causam. Devido a esta falta de consciência de si mesmos e dos outros, haverá sempre pouca motivação para a mudança ou para identificarem um problema nas suas relações e pedirem ajuda — geralmente “os outros é que são o problema”.
Como me proteger de uma relação narcísica
Como já mencionei anteriormente, mais do que diagnosticar, importa avaliar o impacto que essa pessoa tem na saúde mental de quem com ela convive. Algumas perguntas que poderão ajudar a avaliar esse impacto:
- Que necessidades minhas são, com frequência, suprimidas nesta relação?
- Que valores meus tenho que abdicar regularmente nesta relação?
- Como me fico a sentir emocionalmente e fisicamente quando em contacto com esta pessoa?
- Qual é o gasto de energia que tenho ao interagir com esta pessoa?
- Quais são os meus níveis de desgaste físico e mental depois de conviver com esta pessoa?
É a carga emocional que esta relação provoca que irá dar pistas sobre o que é preciso fazer face a esse desgaste. Num cenário ideal, ninguém teria de se ajustar por um período prolongado a uma personalidade narcísica. Ninguém teria de suportar consistentemente elevados níveis de desgaste emocional. Por isso, se existem os recursos necessários à mudança de contexto — então devem ser usados — Tenho recursos para cessar esta relação? Tenho a possibilidade de mudar de emprego?
No entanto, infelizmente, esta nem sempre é a realidade. Por vezes, devido ao contexto social em que se encontram e devido a fatores financeiros, as pessoas veem-se presas a um clima organizacional que as consome. E quando assim é, é necessário construir recursos que aliviem a carga emocional que têm de, diariamente, carregar:
- Consigo encontrar formas de me proteger mais nesta relação?
- Consigo regular as minhas emoções quando em contacto com esta pessoa?
- Consigo cuidar das minhas emoções posteriormente à interação com esta pessoa?
- Consigo desabafar e partilhar a experiência com outros colegas que sintam o mesmo?
- Consigo estabelecer limites que me respeitem mais nesta relação?
- Consigo encontrar uma forma de comunicar a esta pessoa aquilo que preciso?
Devemos procurar sempre uma forma de cuidarmos das emoções que surgem no contacto com o outro. Mas sabemos que não existe nível de autocuidado ou regulação emocional que torne fácil a relação com uma personalidade narcísica. Por vezes, o maior ato de compaixão que se pode ter é o de relembrar “se eu precisar de ir embora, vou embora”, outras vezes, a autocompaixão soará mais a “eu irei defender-me e reforçar os meus limites sempre que precisar” ou “neste momento não me posso ir embora, mas farei o que está ao meu alcance para me proteger desta relação”.
Dificilmente alguém que convive com a pessoa narcísica sentirá que existe espaço para as suas necessidades e valores pessoais. E sabendo que não existirá espaço para se ser quem é na relação com a pessoa narcísica, que a relação que estabelecemos connosco nos abra cada vez mais esse espaço. Talvez precisemos não só de ir procurando (e experimentando) novas formas de nos relacionarmos com alguém com personalidade narcísica, mas também precisemos de testar novas formas de relação connosco. Que essa relação parta de um sítio compassivo, de afirmação de quem somos , de respeito pelos nossos valores, bem como de validação e abertura para as experiências emocionais mais desafiantes.