Há um certo desconforto na ideia de sermos mais do que um. Desde cedo, aprendemos a procurar coerência, a contar uma história sobre nós que faça sentido, que tenha continuidade e que nos apresente ao mundo como uma personagem estável e previsível. Mas será que essa constância é real? Ou será apenas uma tentativa de organizar aquilo que, por natureza, é múltiplo?
Se pensarmos na mente como um teatro, há várias personagens que entram e saem do palco a toda a hora. Podemos ser confiantes num contexto e inseguros noutro, muito pacientes com algumas pessoas e impulsivos com outras. Às vezes, sentimos que há um lado nosso racional que tenta acalmar um lado ansioso debatendo e apresentando diversos argumentos. A verdade é que somos compostos por diferentes personagens que emergem conforme o contexto e necessidades internas e há, ainda, uns quantos espectadores que comentam o que observam, cada um com a sua consciência e memória.
Para percebermos melhor a dimensão dos atos e cenas que podem ocorrer dentro de nós, pensemos neste exemplo: tens uma apresentação importante para preparar mas dás por ti a procrastinar constantemente, adiando a tarefa até ao último momento.
Imagina o teatro interno:
Uma a uma, as personagens entram em cena.
A primeira a surgir é uma figura descontraída, que entra bocejando e com um ar de quem prefere fazer outra coisa. Olha para o relógio, estica-se na cadeira e diz:
— Dá tempo… Só consigo trabalhar bem sob pressão.
De imediato, entra outra personagem, com passo firme, ar tenso e vestida com rigor. Olha em volta com reprovação e sentencia:
— Tem de estar perfeito! Não podemos falhar. Cada detalhe conta.
A sua presença impõe-se e congela o ambiente, bloqueando qualquer tentativa de iniciar.
Do lado oposto, aparece uma figura com um bloco de notas cheio de rabiscos coloridos. Tem mil ideias nas mãos, mas fala num tom hesitante:
— E se não gostarem disto? Talvez não faça sentido. Talvez seja melhor não mostrar.
E recua rapidamente para a sombra, antes que alguém a questione.
Logo atrás, surge uma figura apressada, a andar de um lado para o outro. Tem o olhar preocupado e a respiração acelerada.
— Isto é importante. Temos de começar agora! Se não nos despachamos, vamos comprometer tudo.
Mas o seu tom urgente parece alimentar ainda mais a confusão em palco.
Cada parte tenta agir com base nos seus próprios objetivos e quando alguma delas tenta dominar surge o conflito entre as personagens, podendo atrapalhar e dificultar a capacidade de tomarmos decisões e agir.
São em situações como estas que todos nós podemos notar a multiplicidade da nossa mente e o quanto aquilo que somos é uma variedade de partes em interação, em conversa e a contracenar. É provável que já tenhas ouvido uma parte de ti a dizer “Quero ficar.” e outra a dizer “Vai embora.”. Porque julgamos estar apenas diante de pensamentos que se contradizem, não prestamos atenção àquilo que se desenrola por detrás deste debate interior.Há partes nossas que querem avançar sem medo, enquanto outras hesitam, carregando feridas antigas. Se observarmos de perto, notamos que dentro de nós há vozes, personagens, fragmentos que contam diferentes histórias sobre os nossos recantos.
Multiplicidade da mente
O conceito de multiplicidade da mente entende que a mente humana não opera como entidade única e homogénea, mas como um sistema composto por diferentes partes ou aspectos internos que convivem e interagem constantemente. Essas partes podem representar maneiras distintas de pensar, sentir e agir, muitas vezes com intenções ou desejos conflitantes, refletindo a complexidade da experiência subjectiva. A identidade, nessa perspectiva, é vista como um processo dinâmico, construído a partir do diálogo interno entes essas diferentes vozes que se organizam em torno de contextos, memórias e afetos.
Esta ideia começou a ganhar força quando vários estudos psicológicos e neurológicos demonstraram como diferentes sistemas cerebrais operam de forma paralela, — integrando emoção, memória e razão — e contribuem para uma mente multifacetada, fluida e em constante reorganização. Assim, a multiplicidade da mente não é sinal de fragmentação, mas expressão da riqueza e plasticidade da vida psíquica.
Medo de fragmentação
Pode ser difícil abraçar o conceito de multiplicidade da mente porque um dos grandes medos do ser humano é sentir-se “fragmentado” e perder a noção de quem é.
A nossa identidade é construída sobre a necessidade de uma visão integrada de nós mesmos, pois sem essa coesão, podemos sentir que estamos à deriva num caos existencial. No entanto, reconhecer a multiplicidade da mente não significa sermos contraditórios, confusos ou incoerentes, mas sim aceitar a complexidade e profundidade da nossa experiência interna. Alguém pode ser muito sério no trabalho e brincalhão com os amigos, e isso não significa falta de autenticidade, mas sim a adaptação natural a diferentes contextos — um reflexo saudável da nossa capacidade de navegar por múltiplas dimensões do ser. Em vez de ameaçar a nossa identidade, essa aceitação permite-nos compreender melhor as diferentes facetas que nos compõem e integrá-las de forma mais harmoniosa.
Como acolher as nossas partes?
Acolher a nossa multiplicidade pode ajudar-nos a viver de forma mais autêntica e equilibrada. Muitas vezes, tentamos forçar uma imagem rígida de quem somos, tentando pôr de lado partes nossas que podem parecer contraditórias ou inconvenientes. No entanto, sabemos que negar essas facetas internas pode criar conflitos, ansiedade e uma sensação de desconexão. Quando reconhecemos e aceitamos que somos compostos por diferentes partes, algumas mais seguras, outras mais receosas, umas mais racionais, outras mais emocionais, criamos espaço para um autoconhecimento mais profundo, podendo ajudar na regulação emocional e a tomar decisões mais equilibradas.
Podemos começar por apenas notar o que surge dentro de nós em determinada situação, com curiosidade e sem julgamento. Nomear o que sentimos pode ser um primeiro passo, por exemplo, se estás indeciso entre aceitar ou não uma nova oportunidade de trabalho, reconhecer as partes (seja um lado ambicioso, inseguro ou racional) pode ajudar a pesar os prós e contras sem seres dominado pelo medo ou pelo impulso.
Essa consciência abre caminho para um diálogo interno mais gentil, no qual deixamos de lutar contra partes nossas que, à primeira vista, parecem atrapalhar. Quando sentimos que estamos demasiadas vezes a procrastinar, em vez de forçar o desaparecimento desse impulso, podemos nos perguntar o quê que esse lado está a tentar evitar/proteger e talvez descobrir que há uma parte nossa que teme não ser suficiente.
Com tempo, esse “olhar para dentro” pode nos levar a encontrar formas de equilibrar o nosso sistema interno, sem que nenhuma parte precise dominar, permitindo que cooperem em vez de entrarem em conflito.
Quando uma parte nos diz que precisamos de um tempo de descanso e outra exige produtividade sem fim, pode ser importante organizarmos o nosso tempo de forma a atender às duas, reconhecendo, assim, as nossas necessidades e limites.
Ao compreendermos que diferentes partes da mente têm perspectivas distintas, podemos evitar decisões impulsivas ou simplesmente baseadas numa única emoção.
Acolher as nossas partes não é um processo simples. Muitas vezes, estamos tão identificados com uma delas — seja a parte crítica, perfeccionista ou aquela que evita o desconforto — que nem nos apercebemos de que outras vozes internas estão a ser silenciadas. Podemos sentir-nos confusos, presos em padrões ou dominados por emoções sem compreender bem porquê.
Este percurso de escuta e integração pode ser mais fácil de ser acolhido com a ajuda de um profissional. Em psicoterapia, criamos um espaço seguro para ires descobrindo, aos poucos, quem és em toda a tua complexidade, permitindo que todas as vozes internas tenham lugar e sentido na tua narrativa pessoal.