Por que razão passamos (ou devemos passar) 1/3 do nosso dia a dormir? O que ganhamos com isso? Teremos encontrado aqui o grande erro da evolução? O case study que deixaria Charles Darwin a dar voltas no seu túmulo?
Já todos ouvimos alguém dizer que dormir é uma perda de tempo e que não existe qualquer razão lógica que possa justificar permanecer diariamente 8 horas por dia deitados, com os olhos fechados e sem executar qualquer movimento. Na linha desse mesmo argumento, acrescento ainda que enquanto estamos a dormir não estamos à procura de alimento, não estamos a acasalar ou à procura de parceiro, assegurando assim a continuação da espécie e, para além disso, estamos completamente vulneráveis ao ataque de qualquer predador (que no caso dos humanos possa ser, talvez, um mosquito). Não estão ainda muito convencidos da importância do sono, pois não?
A verdade é que a natureza não perde tempo. Ainda não foi encontrado nenhum processo fisiológico que seja redundante, ou seja, cuja existência não seja necessária. Sim, e até o pobre do apêndice, tão desvalorizado por todos tem a sua função (exerce um papel muito importante na estimulação do nosso microbioma intestinal).
Certamente que um processo cuja expressão se verifica em todas as espécies sem exceção, que reduz o estado de vigília para níveis perigosamente baixos deverá ter uma função imprescindível. E tem mesmo!
O sono exerce a sua função em praticamente todos os nossos sistemas e órgãos. É tão imprescindível que, mesmo em plena migração, as aves não lhe conseguem fugir e dormem em pleno voo. No reino marinho, ainda que estes animais estejam condenados a nadar até à eternidade, estes não prescindem do sono e dormem com um hemisfério de cada vez. Como veem, existe unanimidade no que toca à importância do sono pelas espécies que habitam a Terra. Mas há uma espécie que não esteve presente nesse conselho. Conseguem adivinhar qual?
O ser humano, pois claro! O ser humano e o seu poderoso intelecto são, mais uma vez, os pioneiros num feito extraordinário! Somos os únicos a privarmo-nos de sono deliberada e intencionalmente! A nossa reputação precede-nos! Todos sabemos que uma das principais características da nossa espécie, e uma das que mais nos orgulha, é o desrespeito exímio das nossas próprias necessidades e ritmos naturais. E claro! O sono não podia ser exceção!
Ok Rui, já chega de sermão. Diz lá então quais são esses benefícios… — pensam vocês enquanto leem este texto. Calma! Uma coisa de cada vez…
Dormir mais significa viver mais. A ciência é unânime em relação a este facto. A privação de sono tem um impacto dramático na nossa saúde cardiovascular, sistema imune, cérebro, peso, entre muitos outros. E todos estes fatores têm um impacto direto na nossa saúde e longevidade.
Mas antes de vos colar à parede com estudos e dados científicos acerca do quão dramaticamente mais curta a vossa vida será caso não durmam o número de horas recomendadas, vamos explorar um pouco o que é isto do sono.
O nosso sono pode ser dividido em REM e NREM. Durante o sono REM (rapid eye movement), tal como o nome indica, ocorrem movimentos rápidos dos nossos olhos e é o tipo de sono no qual ocorrem os sonhos. Isto significa que sonhamos todas as noites! Ouvimos dizer com frequência: “esta noite sonhei tanto!”. O que as pessoas realmente querem dizer aqui é: “lembro-me da maioria dos sonhos que tive esta noite!”. Todas as noites, imediatamente após termos sonhado, o nosso cérebro apaga a memória desse mesmo sonho. No entanto, se despertarmos durante o processo, é normal que essa memória perdure e, por isso, nos lembremos do conteúdo dos nossos sonhos. Caso este despertar não ocorra, os nossos sonhos serão eliminados da nossa memória e não teremos a consciência de que passamos uma porção bastante significativa da nossa noite a sonhar. Durante esta fase, ocorre ainda algo a que chamamos atonia. Este processo paralisa o nosso corpo, impedindo que façamos um acting-out dos nossos sonhos. Este estado de atonia e a sua não reversão, em determinados casos específicos, é responsável pelo que conhecemos como paralisia do sono. O que acontece é que ainda que o nosso cérebro esteja já a acordar, ainda não consegue temporariamente libertar o corpo desta prisão provocada por ele próprio, resultando num cérebro ativo mas sem capacidade de mover o corpo. Toda a gente que já passou por uma situação como a que descrevi percebe o pânico sentido ao percebermos que estamos presos no nosso próprio corpo, sem nos podermos mexer ou mesmo falar. Cena digna de filme de terror, não é? O nosso cérebro tem um ótimo sentido de humor. Nestes períodos de transição entre vigília e sono (ou vice-versa) poderão ocorrer também alucinações. Chamam-se alucinações hipnagógicas e hipnopômpicas. Durante estes episódios as pessoas poderão ter experiências percetivas visuais, táteis ou auditivas. A boa notícia é que são fenómenos transitórios, demorando apenas alguns (longos) segundos. Por fim, durante as fases REM verifica-se uma intensa e dessincronizada atividade cerebral, muito semelhante àquela experienciada durante a vigília.
Durante o sono NREM (non-rapid eye movement), ao contrário da fase REM, não se verificam movimentos dos olhos, sendo esta caracterizada por uma atividade cerebral lenta. Esta fase é ainda dividida em 4 fases (N1, N2, N3 e N4). As fases N1 e N2 são uma transição entre a vigília e o sono, e as fases N3 e N4 são chamadas de slow wave sleep e correspondem ao sono profundo.
Durante uma noite completa de sono (entre 7 a 8 horas — sim, leram bem), estes dois tipos de sono ocorrem em alternância e duração variáveis ao longo de 4 a 5 ciclos. Cada ciclo de sono dura cerca de 60 a 90 minutos. No final do ciclo ocorre um aumento dos níveis de vigília. Ainda, a “receita” dos vários ciclos de sono é variável no que diz respeito às quantidades de sono REM e NREM. Por exemplo, no início da noite predomina o sono NREM, e no final da noite, os nossos ciclos são preenchidos quase totalmente por sono REM.
O que acontece quando decidimos atrasar o início do nosso sono ou despertamos mais cedo do que o suposto é que este ciclo fica incompleto. Dependendo da forma como esta interrupção ocorre, poderão surgir consequências diferentes. Ao perdermos sono NREM (início da noite) deficitamos, por exemplo, a nossa capacidade de consolidação de informação na memória, perturbamos a capacidade de aprendizagem do dia seguinte e, por exemplo, comprometemos a recuperação e restauro do nosso sistema cardiovascular, tão necessária após a intensa atividade durante a vigília. Quando despertamos mais cedo do que devíamos, perdemos uma enorme quantidade de sono REM, o que terá um impacto dramático na nossa criatividade, resolução de problemas, diminuição da ativação emocional negativa e, até, aprendizagem de novas línguas!
Há uns tempos, circulou um mito de que os seres humanos apenas utilizariam uma pequena percentagem da “capacidade total” do seu cérebro. Como jovem a iniciar o estudo do cérebro e comportamento humano, achei esta ideia instantaneamente ridícula.
No entanto, à medida que fui estudando o sono, percebi que esse mito pode ter então alguma verdade. E não, não estou a falar da possibilidade de desbloqueio de poderes telepáticos ou telecinéticos escondidos, apenas descobertos por monges na China antiga.
A receita para o desbloqueio dessa capacidade plena do nosso cérebro é, na verdade, bastante simples (e talvez mais aborrecida): 7 a 8 horas de sono por noite.
Cerca de 1 em cada 3 pessoas vive num estado de privação de sono crónica, o que significa que vivem com esta “síndrome de cérebro bloqueado”. Quando não dormimos o suficiente estamos condenados a viver num estado subótimo de desempenho e saúde.
Por isso, a questão não é se podemos desbloquear aptidões escondidas do nosso cérebro. A questão é se não estaremos nós a bloqueá-las com sono insuficiente.
Este é o primeiro de uma série de textos que produzirei onde irei explorar vários temas relacionados com o sono, nomeadamente, a sua função nos nossos vários sistemas, as consequências da sua privação, ritmos circadianos, cronotipos, sono ao longo da vida, entre muitos outros.